Estou na posse de um casaco amaldiçoado.
É de veludo preto, canelado, e foi recentemente resgatado do meu guarda-roupa nos Açores.
Chegou a Lisboa com a típica fragrância de humidade tão característica das ilhas e levei-o à lavandaria na semana passada. Hoje trouxe-o para casa, envolvido no seu saquinho plástico e preso por um cabide de excelente qualidade - daqueles que as lavandarias oferecem aos seus estimados clientes.
Numa das estações de metro estava eu dentro da carruagem quando as portas começam a fechar-se. Nisto, uma senhora que estava comodamente sentada num dos bancos da plataforma, de súbito cai em si e apercebe-se que deve entrar.
Vem ela numa corridinha de meter vergonha a tentar entrar e desiste quando vê que as portas se começam a fechar.
Eu, armado em herói, meti as mãs na porta do metro para não as deixar fechar e incentivei à senhora a correr um pouquinho mais depressa.
A senhora decidiu desistir de apanhar aquele metro e eu larguei as portas que se fecharam de imediato antes que eu afastasse o casaco que trazia [da lavandaria] na mão. A viagem até à próxima estação foi feita comigo grudado à porta e o casaco preso na dita.
Toda a gente viu, toda a gente se apercebeu. O que nem toda a gente sabe é que eu desejei (e ainda desejo) que a senhora perca todos os metros até por volta da uma da manhã.
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Mais tarde, já no percurso pedonal até casa, vinha imaginando onde colocaria o malfadado casaco quando chegasse ao prédio para poder trazer o caixote de lixo para a rua, antes de subir e recolher-me.
Brilhantemente, pensei que a solução passaria por torcer um pouco o gancho do tal cabide de qualidade para que o pudesse pender no corrimão da escada e tratar então da empolgante tarefa de meter o lixo na rua.
Vou subindo a rua enquanto vou torcendo o gancho do cabide quando ele dá de si, quebra e deixa-se ficar na minha mão ao mesmo tempo que abandona a restante peça que cai ao chão levando consigo o casaco.
Nisto, vem passando uma mulher com o filhote pela mão, no sentido contrário, e que tropeça e quase cai para não meter o pé em cima do casaco acabado de cair ao chão.
Mais uma vez, muita gente viu, e muita gente se apercebeu. O que muita gente não sabe é que eu até sou rapaz para nunca vir a vestir aquele casaco.