Desde há muitos anos que me habituei a escrever sobre o que sinto para poder, desta forma, compreender melhor aquilo que sinto. Dizer dos meus sentimentos, em palavras derramadas no papel – ou ecrã de computador – nunca foi tarefa difícil e sempre funcionou como um medicamento para as minhas dores. Mesmo porque sempre que escrevia, tratava dos meus sentimentos em privado e permitia-me desbravar todo o terreno ao encontro de um eu cada vez mais real e consciente.
Mas escrever sobre ti, agora, tem sido algo que não me sai naturalmente. Sinto uma grande necessidade de o fazer mas quando começo, parece que todas as palavras nascem mudas, distantes, alheias, falsas. Nenhuma delas carrega a massa total da dor que contam. E sinto também que ao escrever sobre ti, não o faço em privado. Sinto que elas devem ser dirigidas não apenas ao recorte do papel mas a tanta gente, a tantas pessoas, a tantos pedaços teus que ficaram cá conosco. E, ao pensar em todas elas, estou inevitavelmente a pensar em ti. Enquanto escrevo, estás aqui comigo e é isso que me faz confusão. Como habituar-me à ideia de escrever para ti, tendo-te aqui comigo, mas falar apenas de uma mágoa provocada pela tua ausência?
Como compreender a dor de te perder?
Parece que ainda no outro dia nos ganhámos um ao outro. Foi o que nos saiu na rifa. E não podia ter saído nada mais valioso. Eu estava a viver em França naquela altura. Foi em Agosto de 2003. Logo no início do mês. Lembro-me que foi um mês de muito calor por toda a Europa, e no Vale do Indre, onde eu estava, faziam 40 graus à sombra. Eu estava doente. Apanhei um virús qualquer que em deixou de cama por uns dias. Sentia frio, naqueles dias quentes, e passava horas debaixo do cobertor a tremer de frio. Lembro-me que a indisposição começava sempre à mesma hora do dia… Por volta das quatro da tarde começava a doer-me a cabeça, ficava tonto, meia hora depois começava a ter frio, ia para a cama enrolar-me nos cobertores e ficava assim. Quase não jantava e só na manhã seguinte é que voltava a sentir-me melhor. E foi nesses bocados em que me sentia melhor que acabei por conhecer virtualmente um novo amigo. Nessa altura iniciámos a nossa troca de emails a falar sobre nós, quem éramos, do que gostávamos, o que queríamos da vida. Passei a ligar-te de vez em quando. E conversávamos pouquinho. As chamadas internacionais eram caras. Mas a maior parte do que íamos descobrindo um acerca do outro foi descoberto através de palavras escritas, por email.
E nós deixámos de saber estar sem que estivéssemos em regular e frequente contacto um com o outro. Entendíamo-nos tão bem! Dizias tantas vezes que só eu é que te compreendia em alguns aspectos. Sim, Palhacito, compreendia-te muito. A tua amizade era-me muito querida e eu encontrava no teu mundo interior cada vez mais razões para te conservar como meu melhor amigo. Rapidamente te tornaste naquele meu grande, especial, adorado e querido amigo. O meu amigalhacito… às vezes pedias para te chamar assim. Gostavas muito quando eu o fazia.
No final daquele ano decidi regressar a Portugal e fui viver para os Açores durante um ano e foi nesse ano, 2004, que acabámos por nos conhecer pessoalmente. Em Agosto. Naquele mês fazia um ano que nos tínhamos conhecido. E desde que voltei aos Açores que nós criámos um hábito que ficou muito enraizado entre nós: o de falarmos ao telefone todos os dias, todos, e várias vezes ao dia. Daquela altura, eu não me recordo de um único dia em que nós não tivéssemos falado um com o outro pelo menos duas ou três vezes.
Falávamos sobre tudo, falávamos sobre nada… de coisas importantes, de coisas desinteressantes, de coisas banais, de coisas feias, de coisas bonitas, de pessoas, lugares, de tempos passados, de sonhos realizados e de outros por realizar. Deixávamo-nos, assim, entrar no mundo um do outro tão completamente, que acabou por não haver nada de um de nós, que não fosse por direito do outro também.
Fui a Lisboa em Agosto e foi então que a nossa amizade ganhou o seu “certificado oficial” de algo com valor imenso. Não me esquecerei nunca do café que tomámos no Central Park na primeira vez que estivemos a poucos metros um do outro. Foi como se aquele momento tivesse validado e confirmado a nossa grande cumplicidade. Nem do nosso jantar na Quinta do Tabaco em que estávamos tão felizes por finalmente estarmos a partilhar momentos nossos. Nem do abraço que me deste à despedida no aeroporto quando regressei a Ponta Delgada. Em todos os teus abraços – incluindo esse – senti que me entregavas por inteiro uma amizade dedicada, sentida, e muito acarinhada.
Em Novembro desse ano vieste tu aos Açores, conhecer uma outra preciosidade minha, a ilha de São Miguel. O valor daqueles dias que passaste cá comigo é incalculável. Não há como verdadeiramente conhecer a felicidade que era poder mostrar a minha ilha ao meu Palhacito. Vivemos momentos tão felizes, tão cúmplices, tão despreocupados. Rimos tanto… falaste tanto mal da chuva que caía quase todos os dias (é Novembro!!!! – dizia-te eu. Estavas à espera de quê?) Lembro-me tão bem de como tantas vezes nós implicávamos um com o outro só mesmo pela felicidade que sentíamos ao fazê-lo. Nunca nos chateámos um com o outro. Nunca nos zangámos um com o outro. Tínhamos um carinho tão grande, e especial, um pelo outro. Permitíamos tanto um ao outro…
No ano seguinte, em Março, fui viver para Lisboa. Arrendámos um apartamento em Linda-a-Velha e os meses seguintes foram sem dúvida dos mais felizes de toda a minha vida. Eu sentia que estava onde deveria estar. Partilhava casa contigo, estava de novo a viver na proximidade de um grande centro urbano, e sentia que a vida corria tão bem, estava tudo tão certo, tão afinado e tão iluminado na minha vida.
“Que outra cidade, Levantada sobre o mar, à beira-rio acabou por se elevar, Entre dois braços de água, Um de sal, outro de nada…” – Adorávamos essa música dos Madredeus. Estávamos os dois a realizar um sonho nosso: viver em Lisboa. E esse sonho que nos era tão desejado, realizámo-lo juntos. Vivemos a felicidade um do outro enquanto ela acontecia. Momentos assim, partes de vida assim, acontecem apenas com pessoas muito especiais e que nos são muito queridas. Por isso tudo, e por tanto mais, é que serás sempre aquele calorzinho doce que sentirei no meu coração ao lembrar-me de ti.
A tua gargalhada quando te rias dos meus disparates, da minha maneira de ser, o teu sorriso sempre tão doce quando nos víamos pela manhã ou quando chegavas a casa do trabalho, todas as vezes em que me abraçavas quando eu estava menos bem, de todas as vezes em que nos abraçávamos quando algo corria muito bem um ao outro, a tua voz, os teus insultos (sempre na brincadeira)… insultavas-me tanto às vezes. Vaca, chamavas-me tu. Eras tão engraçado. As vezes todas quando me atendias o telefone sempre da mesma forma: “Amiiigaaaa!!!”.
Que saudades tuas, Palhacito. Tantas. Tu fizeste parte da minha vida desde o início do seu ponto de viragem mais extraordinário. Tudo corria tão bem e eu tinha a sorte acrescida de poder partilhar essa felicidade com alguém tão especial como tu. Sinto-me muito abençoado por ter podido fazer parte da tua vida quando eu estava no meu melhor e assim poder oferecer a ti o melhor que havia em mim.
Havia uma cumplicidade muito enraizada entre nós. Nenhum de nós se atreveria a quebrar essa cumplicidade, essa forma tão forte de sermos amigos um do outro. Éramos muito leais, e protegíamo-nos mutuamente. Eu adorava-te Palhacito. E disse-to repetidas vezes. Foste sempre tão especial que nunca me foi difícil, ou demais dizer-te que te adorava. Muitas vezes vieste em busca do meu abraço, e em todas elas te disse o quão especial és para mim.
Em ti eu encontrava um pilar ao qual me poderia apoiar a qualquer instante. Nunca duvidei da tua dedicação à nossa amizade, nem do teu carinho por mim. Soube sempre que em ti encontraria a qualquer altura um amor que era recíproco e muito próprio, muito nosso. A amizade que sentia por ti era muito única. Eras o meu Palhacito adorado. E és ainda. E serás sempre.
Perder-te é inconsolável. É indescritível. É irreal. Por vezes penso em ti e as memórias são todas tão distantes… enevoadas, apenas segundos isolados de várias situações, misturados todos nuns quantos minutos de confusão, de falta de sentido.
Outras vezes, as memórias de ti são tão fortes, tão presentes, tão reais, que quase oiço de novo a tua voz, oiço de novo a tua gargalhada, sinto de novo o teu abraço… e quando as memórias são assim, enterro-me numa tristeza tão avassaladora. Que desgosto perder-te meu amigo. Que desgosto tão grande nunca mais te ver, nunca mais te poder dar aquele abraço e reafirmar que gosto muito de ti.
Por todas as vezes em que não estive totalmente presente, por todas as vezes em que as minhas palavras te possam ter atingido com um peso mal medido, por todas as vezes em que me tenhas sentido ausente, por todas as vezes em que possa não ter cumprido a cem por cento com a minha dedicação, uma miríade de desculpas te peço. Sabes como sempre foste tão importante para mim.
E por todas as vezes em que eu estava lá, em que me deste um sorriso, em que te sorri de volta e te abracei, por todas as vezes em que vieste ao meu socorro, por todas as vezes em que me deliciaste com a tua companhia, por todos os afectos, todos os apoios, todos os insultos… um obrigado eternamente reconhecido. Obrigado por me teres abrigado em ti e por me permitires acolher em mim esse sentimento tão doce que é o de me ter sentido teu amigo.